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Rosa

Rosa aprendeu desde cedo com sua mãe e sua avó como cuidar da casa, limpar, passar, lavar, costurar, cozinhar, tirar mancha de roupa, ariar panela, limpar vidro sem deixar manchas, pendurar roupa no varal e que quando leite começa a ferver, tem que desligar o fogo imediatamente, porque transborda e suja tudo. Não tinha muitas obrigações nas tarefas da casa, pois sua mãe desempenhava todas, com perfeição, como exigido de uma boa dona de casa. Mas aos doze anos, quando ainda brincava de boneca, criava histórias e desenhava, sua mãe passou a ordenar que cumprisse com algumas atividades da casa. Aos domingos ficava a tarde inteira passando suas roupas, com riqueza de detalhes exigidos por sua mãe. Depois vieram outras tarefas, como lavar banheiro, passar flanela nos móveis, tirar o lixo, estender as roupas no varal, lavar os tapetes e logo sua mãe começou a mostrar como fazia as coisas na cozinha, que além de cozinhar, incluía lavar a louça metodicamente, organizar os armários,  higienizar os alimentos, limpar o fogão, tirar o lodo da pia, limpar a geladeira. Rosa sempre estava atenta aos ensinamentos de sua mãe, afinal tudo aquilo parecia ser o normal para toda mulher.

As primeiras brincadeiras de uma menina são cuidar de bebê e brincar de casinha. Quando a menina chega à pré-adolescência existe uma expectativa social de que  já tenha entendimento sobre suas ações e espera-se que ela já saiba desempenhar algumas atividades domésticas, pois é entendido como valor da mulher para a sociedade. Se voltarmos a alguns anos atrás, não muito, as mulheres se casavam meninas, sim, meninas de 13, 14, 15 anos. Eram tuteladas pelos homens da família, passando do pai para o marido. Até pouco tempo existiam leis que não permitiam que a mulher desenvolvesse sua autonomia. 

Em 1932 a mulher conquistou o direito ao voto. 
Em 1962 foi criado o Estatuto da mulher casada para garantir o direito de trabalhar, receber herança e ter a guarda dos filhos em caso de separação. 
Em 1974 foi conquistado o direito da mulher de portar cartão de crédito. 
Apenas em 1977 o divórcio foi aprovado, mas ainda assim não garantiu que as mulheres deixassem casamentos infelizes por medo do julgamento da sociedade. Mulheres foram reconhecidas como iguais aos homens pela Constituição em 1988 e entre os direitos mais recentes, em 2002 a ausência de virgindade deixou de ser crime.
Diante desse cenário desigual, promovido pelo Estado, pelo sistema econômico capitalista, pela sociedade, pelas instituições, principalmente as religiosas, ainda é muito comum em tempos atuais a ideia de que a mulher tem um papel designado apenas por ser mulher. Esse papel é o de cuidar da casa, de ser mãe, cuidar dos idosos e doentes. Mesmo que atualmente haja leis para garantir às mulheres o acesso à liberdade e autonomia, a naturalização do papel da mulher como cuidadora impacta na atuação política da mulher na sociedade, no mundo do trabalho e nas relações sociais. Importante atentar que no Brasil o capitalismo e o machismo se estruturam sob o racismo, sendo assim, as mulheres negras ainda estão mais distantes de alcançar a autonomia e a usufruir dos direitos e garantias direcionados às mulheres mesmo em tempos atuais.

Rosa já mulher adulta, casada, um dia enquanto cozinhava, pediu ao seu marido que olhasse o leite que estava esquentando na panela e que quando começasse a ferver era para desligar. Ela sabia que o leite fervido poderia transbordar da panela. Seu marido nunca recebeu essa dica. Foi quando ela se deu conta que ele, ainda que tenha sido um filho que colaborava com as atividades domésticas, nunca teve seu foco direcionado para tal. Ela, na sua juventude, enquanto recebia dicas valiosas para usar nas atividades domésticas, ele estava completamente focado nos seus interesses individuais, que se desdobravam em atuação política e habilidades para adentrar o mundo do trabalho.

A cobrança pelo bom desempenho na prática do cuidado do lar e da família raramente se torna uma cobrança aos homens, como permeia a existência das mulheres, ainda que não tenham sofrido a pressão direta de suas famílias para serem boas donas de casa, mesmo que tenham sido meninas de famílias privilegiadas que terceirizam os serviços domésticos, existe a subjetividade que atravessa as interações sociais naturalizando o papel da mulher que é saber desempenhar as atividades domésticas, a maternidade, o de cuidadora, ser dócil e de se sacrificar. Quando a mulher não assume nenhuma dessas faces do papel de gênero, ela sofre consequências das mais diversas formas e até mesmo as que podem criminalizá-las.
Os homens que se propõem a se responsabilizar pelo cuidado da casa, dos filhos são considerados homens bons, generosos, desconstruídos, enquanto as mulheres são construídas desde muito cedo para tal.

E você, quanto tempo perdeu olhando o leite ferver?